As necessidades educacionais do povo brasileiro jamais serão atendidas pelo mercado e esse problema precisa ser enfrentado estruturalmente
Mais de dois mil docentes e técnicos desempregados e cerca de 13 mil estudantes sem universidade para concluir seus cursos superiores. Esse é um dos prejuízos que a organização dos professores da Universidade Gama Filho (UGF) e do Centro de Universitário da Cidade (UniverCidade), do Rio de Janeiro, contabilizam com o descredenciamento anunciado pelo Ministério da Educação (MEC) na terça-feira (13).
Mobilizados desde 2012, os três segmentos universitários tentam, há dois anos, negociar com o ministério uma solução para a falência. Após o descredenciamento, o ministro da Educação, Aloizio Mercadante, recusou a proposta dos reitores das universidades federais do Rio de federalizar as duas instituições. O MEC entende que a federalização é o mesmo que integrar no sistema federal público de educação estudantes sem vestibular e docentes e funcionários sem concurso público.
Irregularidades
Os relatos de Jorge Atílio Iulianelli, professor de mestrado em Aplicabilidade da Gama Filho e integrante da Associação dos Docentes da UGF, confirmam a denúncia do Sindicato Nacional sobre os efeitos danosos da mercantilização do ensino superior. Iulianelli afirma que a mantenedora Galileou Educacional poderia ter evitado essa situação porque recebeu grandes volumes de recursos financeiros para reparar as finanças da UGF, mas, em vez disso, comprou outra universidade em falência. Ele afirma que a mantenedora também entrou no cenário de forma ilegal e que o MEC errou ao autorizar a concessão da mantença.
“A UGF e a UniverCidade foram dadas em mantença para a Galileo Educacional em maio de 2012, ano em que havia greve nas duas instituições por pagamento de salários atrasados. E mesmo havendo dificuldades da mantenedora em pagar salários, a Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior do MEC (Seres/MEC) aprovou o ato autorizativo que concedia a mantença à Galileo Educacional. Isso foi errado porque para ter o ato autorizativo, um dos pressupostos, segundo a legislação brasileira, é a autossuficiência financeira. Se não tinha recursos para pagar salários, onde é que havia autossuficiência financeira?”, indaga.
Em dezembro de 2012, houve uma disputa interna entre os acionistas da Galileo que resultou numa total redefinição do conjunto dos acionistas controladores da instituição. “De acordo com a Nota Técnica 40 do MEC, de maio de 2013, a operação acionária implicou em refazimento da mantença, ou seja, seria uma nova mantenedora e o MEC não tomou nenhuma providência”, conta o professor.
O novo grupo controlador da Galileo Educacional negociou o pagamento dos salários atrasados desde outubro de 2012 com a Associação dos Docentes da UGF e com os funcionários. O acordo, todavia, não foi cumprido, e no primeiro semestre letivo de 2013 nenhum pagamento havia sido efetuado. O resultado foi uma greve de 30 dias.
“No segundo semestre de 2013, em reação às mobilizações da comunidade universitária, a Galileo infringiu o regimento interno e o estatuto da Gama filho e demitiu os dirigentes da universidade, empossou novo grupo na administração acadêmica e executou um primeiro pagamento. Houve uma reunião no MEC e no dia anterior a essa reunião, a Galileo anunciou, pela imprensa, a demissão de 247 professores da Gama Filho, que foi seguida de outras demissões de docentes e de funcionários e sem o pagamento de salários até hoje”, conta o Atílio Iulianelli.
O professor conta que os docentes pediram a intervenção ou a revogação da mantença com o retorno dessa mantença para a antiga mantenedora que, desde setembro de 2013, havia feito essa solicitação. Para ele, o MEC errou em dois momentos: ao permitir a transmissão da mantença e ao descredenciar as duas instituições. Em 2013, com o Despacho 37, o MEC suspendeu a autonomia universitária. No mesmo período, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Instituições Privadas de Ensino, na Assembleia Legislativa do Rio, interrogou o diretor-presidente da Galileo e descobriu haver dívidas de R$ 978 milhões.
Para onde vai o dinheiro dos fundos de pensão
Uma denúncia da revista Exame, de agosto de 2013, intitulada “Sala de aula vazia, bolso cheio na Gama Filho e UniverCidade”, dá conta de que a Galileo Educacional é uma empresa privada criada com a fusão da Gama Filho e com a UniverCidade. Todavia, para os mais de 20 mil estudantes, os cerca de 1.600 docentes e aproximadamente mil funcionários (na época), essa união, materializada em 2011, não foi um bom negócio. Mergulhada numa dívida de R$ 910 milhões (valor da época), os antigos controladores da Sociedade Universitária Gama Filho, viram na criação da Galileo a possibilidade de levantar pelo menos R$ 150 milhões por mês.
Como isso foi possível? Assim: no fim de 2010, o advogado de Paulo Gama (herdeiro do presidente Gama Filho), Márcio André Mendes Costa, criou o Galileo com o objetivo de reestruturar a instituição. Fundada em 1939, ela acumulava dívidas de R$ 260 milhões com fornecedores, funcionários e com o governo. Costa sugeriu a Gama a transferência do controle da universidade para uma empresa comandada por ele (Costa) próprio.
Para efetivar a transferência, Costa conseguiu, por meio de fundos de pensão, parte do dinheiro de que precisava para pagar as dívidas e reinvestir na instituição. O Postalis, dos funcionários dos Correios, comprou R$ 75 milhões em debêntures e a Petros, dos funcionários da Petrobras, investiu R$ 25 milhões. A garantia dos papeis eram as mensalidades dos dois mil estudantes do curso de medicina, a qual chegava a R$ 4 mil mensais.
O advogado conseguiu ainda empréstimos bancários no valor de R$ 80 milhões. Em vez de investir na Gama Filho, a Galileo comprou outra instituição que estava em apuros financeiros, a UniverCidade, a qual acumulava dívidas de R$ 265 milhões. Fundada pelo ex-banqueiro Ronald Levinsohn, que ficou conhecido nos anos 1980 pela quebra da financeira Delfin, na época dona da maior caderneta de poupança do país, a UniverCidade também foi cedida ao Galileo.
Documentos divulgados pela revista Exame revelaram que, “por trás das transferências, existiam contratos de pagamentos milionários aos antigos mantenedores. Paulo Gama e um sobrinho dividiriam quase 45 milhões de reais para não assumir cargos executivos durante cinco anos em outra instituição de ensino. E ainda cobrariam 1,8 milhão de reais por mês pelo aluguel de imóveis e da marca Gama Filho”, diz a revista.
A matéria da Exame informa ainda que, “com Levinsohn, a Galileo estabeleceu uma indenização de 100 milhões de reais para que duas outras entidades filantrópicas dirigidas por ele — Instituto Cultural de Ipanema e Associação para a Modernização da Educação — permanecessem fora do setor de educação por 30 anos”.
Federalização não resolverá a crise das particulares
Tema precisa ser pautado com profundidade
O ANDES-SN tem denunciado há muito tempo o descalabro no qual tem sido transformado o ensino superior brasileiro, um dos países da América Latina com o menor percentual de jovens diplomados no ensino superior, com uma das menores inversões de recursos públicos em educação perante o Produto Interno Bruto (PIB), com uma das maiores taxas de privatização do ensino superior e, ainda assim, com transferências de recursos públicos para as empresas que exploram a educação como mercadoria. “A crise dessas duas universidades é mais uma prova de que a questão precisa ser enfrentada estruturalmente”, analisa o 1º vice-presidente do Sindicato Nacional, Luiz Henrique Schuch.
Sobre a federalização, ele afirma que o aparente conceito de banalidade à primeira vista – uma empresa ser assumida pelo governo federal ou estatizada – não tem nada de banal porque há uma profunda contradição em usar este termo na situação atual, uma vez que a educação deveria ser propiciada em ambiente público. Todavia, seguidos governos têm se esquivado dessa responsabilidade, até mesmo repassado recursos públicos diretos e indiretos para as empresas do setor de serviços que tratam comercialmente do ensino. O ambiente, portanto, é de privatização.
A contradição nesse momento, quanto a esse caso específico da UGF e UniverCidade, é a tensão radical entre as duas faces que o problema revela: por um lado, é uma empresa falida, apesar de ter sido beneficiada com recursos públicos diretos, isenções fiscais, financiamentos facilitados e recebendo inversão recente de fundos de previdência de empresas estatais que estão sob controle político do governo.
“Considerando essa face seria um absurdo pensar que os prejuízos privados venham a ser transferidos para o Estado. A outra face é que um segmento que deveria estar sendo contemplado com política pública e institucionalizado no espaço público foi transformado em negócio privado por ações e muitas omissões dos governos e, na realidade, a vida profissional e acadêmica de muitos professores, funcionários e estudantes é jogada abruptamente no chão. Nesse aspecto o governo tem responsabilidade e precisa entrar em cena, mesmo que tardiamente, para equacionar”, avalia Schuch.
Para o dirigente do ANDES-SN, a responsabilidade daqueles que defendem a educação pública é pautar esse debate em profundidade. “Além disso, é preciso denunciar o fato de as mantenedoras e as direções das universidades privadas vir utilizando de todos os meios, há mais de 20 anos, para impedir a organização dos docentes no ANDES-SN, até mesmo com a demissão sumária de comissões provisórias ou toda a diretoria de seções sindicais que conseguiram se constituir, assunto que já resultou em denúncia por iniciativa do ANDES-SN na Organização Internacional do Trabalho (OIT) e condenação por prática antissindical”, finaliza o 1º vice-presidente.
*Com informações da Revista Exame, do G1 e de O Estado de S. Paulo
* Fotos: Página Denúncias contra Gama Filho – Galileo do Facebook